A reprodução proibida, René Magritte
Gustavo Henrique Araújo, colaboração para Fina
Marcelo acordou disposto a ver Aquele-que-tudo-sabe, porque era domingo. E algo dentro dele gemia pela falta de um sentido que o pudesse levá-lo até o fim do dia. Da vida. Ele precisava ver Deus. Havia um sino na catedral da igreja. Um sino. Alto, vasto, imerso. Um objeto grande e reluzente, dourado como as águas de outro mundo. Marcelo sentou-se em um banco à margem de um pequeno jardim selvagem. Antes que ele pudesse pensar, sua alma gritou uma voz de desespero e de milagre sobre-humano.
Havia um sino despertando. Vitorioso em si mesmo. Sobre ele. O pêndulo central acordara, rompendo o sentido do seu íntimo em entraves, badaladas: um som consistente, brutalmente melodioso, divinamente ruidoso. Um som de Deus. Marcelo ouviu atento o primeiro badalar, o primeiro chamamento para o inconcebível do próprio corpo. O que ressoa em mim? Pensou. Porque o sino está longe, mágico e magnífico, alcançando o céu de marfim. Eu estou aqui, onde ninguém me vê, e aconteço como um sino enferrujado; minha ferrugem é a camada do meu primeiro eu, que deixei morrer. A minha superfície é minguante, áspera, como o som que se perdeu dentro do meu corpo.
Eu transito, sonâmbulo, como o sino ausente de sentido, porque não estou me cumprindo em mim. Como um toque que vem da manifestação de ser, como as mãos que escorregam pela minha pele e de repente, nasço. Vejo-me diante do mais completo eu. O milagre. Bomm. A primeira morte. Marcelo diante de mim, diante do mundo, estremeceu. Porque era ele. E o som era uma mão, tocando o seu oculto, o seu lugar em que algo se mistura com a confluência de sentir o peso e a glória de suportar a si mesmo.
O som o sentiu. E Marcelo era. Bomm. Algo lhe chama. Algo sou eu. O espelho da minha face perdida entre o ontem e o hoje. Porque antigamente Marcelo me era. Agora sou que o sou. E o sino é-lhe. Os raios do sol reluziam sobre a cúpula de ouro, rastejando por todos os lados como se uma luz, uma luz melancólica e nova, se estendesse pelo seu corpo e ele se tornasse imenso. Qual era o seu destino? Era este: sentar no banco de madeira úmido pela recém-tempestade, ouvir o som voraz, catedrático, gritando para que ele, exangue como o céu, encontrasse na secura do próprio corpo a ânsia para viver; permitir-se, ainda que lhe parecesse a conjuntura de uma violação, ser transgredido pelo. Bomm. E dessa vez, Marcelo se tomou de tal forma que não entendo. Porque os seus dedos dos pés sentiram o toque, o toque do mundo.
Ele, sem arrogância, sem displicência, sem altivez, se imaginou como o pai dos homens. O eterno. Eu sou o que Deus quer de mim. E seu sangue era o sangue suspenso. Branco, luzente, celeste. Marcelo tornara-se uma fresta para o mistério. E algo nele estava germinando, indomável como o jardim ao seu redor, que não se pressente. Um campo nunca sentido; o silêncio da terra acontecendo antes que o homem reconheça qualquer sinal de vida. Marcelo chegou aonde não se chega. E reivindicou. A si? Ao outro? O que era o meu Marcelo? Carne, desejo, ferrolho. Um Homem.
Marcelo era o meu eu-humano. E eu sou a condição humana que se perde, se transmuta, se persiste na própria raiz do… ser. Ele haveria de querer a mim, a si, líquido, errante, deleitoso. Bomm. E repito o bomm. O gozo. O prazer. O obsceno que é ser homem. Homem. Simplesmente. Marcelo enquanto se preparava para o próximo som, o infinito contido no bomm do mundo, deslizou para dentro de si, como se ao tocar a margem, se tornasse nauta pelas águas da necessidade humana. O que ele é? Múltiplo? Comovente? Donzela? Marcelo não se podia mais definir antes que viesse o bomm da vida. em Antes que ele fosse alguma coisa era preciso não ser.
Minuciosa e lentamente, voltou a chover. Águas sobre a pedra. Um corpo de vagas e passados. E Bomm. Um cão então se fez em meus olhos. Aquele que lhe rondava em busca de algo incompreensível. Porque eu não me posso dar a um cão, eu não sei o que ele me deseja… Eu não sei o que sou para um cachorro sem dono, sem lar, sem humanidade. Eu sou tudo o que ele precisa? Eis a presença foi tenebrosa, pois como se valente e triste ousasse, o cão levantou a escura perna traseira e molhou a calça de Marcelo.
E só ele pode dizer: “nasceu-me o sentimento”. Porque o cão reconheceu em mim a morte, então estava em nós o laço íntimo de uma verdade lascívia, de um instante extasiado: nós éramos cão. Eu era. Marcelo, o que dizes agora. O Bomm. Estava nele o amarelo ardente, a inconclusão. O mais oculto de si veio do outro. E Marcelo olhou o cão, com medo do que ele era. Eu temo a minha condição humana: a surda ladradura de lábios. E como se o cão de repente entendesse tudo, e fosse Homem, gozo, tormento, tudo o que não sou; finalmente o animal pôs suas quatro patas no chão, altivo como um corcel, magro como a vida, negro como a noite, e sem corpo, sem rastro, latiu para Marcelo.
O Bomm de si mesmo. E ele despencou. Incomensurável, rubro, sem osso. Apenas um veio de tempo, uma pergunta pênsil, em uma flamejante campo de lucidez pura. Inteira. E Marcelo então disse ao cão, sem voz, sem som, meramente a bruta carne exposta; o suor, o visgo da realidade enfim sentida como uma ferida incendiada: “eu te amo”. E isso era Marcelo, virgem. Um amor perseguidor, longínquo, um passo aéreo, sobre o meu. Como se ele me amasses e te amasses. Pousando o próprio pé no rasto do meu fogo. Ele pôs as mãos no chão, e diante do homem-cão ele se prostrou de quatro, em meio à tempestade, (em meio) ao Bomm. E ali estava.
O grito. Porque Marcelo enfim livre começou a ganir para Deus. Como cão. Como nada. E de repente se disse: “o meu latido é a própria vida”. O cão então se afastou. Como se não mais precisasse daquele amor de decanto e desespero. Marcelo piscou sob as gotas de chuva em seus cílios; piscou e se viu: Homem. Disposto a ser cão. Depois se levantou. Era humano? Não. Tinha mãos para tocar, pés para pisar, tinha sexo para amar. Mas não era senão ele mesmo. E o cão que o abandonou era o Homem. Marcelo pensou que tinha sido deixado porque, enfim, ele se tornara a terrível sensação do milagre. O sino tocou. Bomm. E essa badalada o soergueu de ímpeto. Marcelo esperou que, pela última vez, o sino soasse. O sopro sacrossanto. E partiu para longe, tão longe que ele mesmo não se alcançava, com medo do cão, de si, de Deus.