Se eu comecei a amá-la? Muito. E além dela, eu comecei a amar a possibilidade do que eu mesma poderia ser. Do que nós duas, juntas, poderíamos ser.
Maria Paula Curto *
Eu achava que amor de mãe era assim: já vinha dado. E que o fato de eu não ter ouvido sininhos nem visto coraçõezinhos brilhantes no céu ao conhecer minha futura filha era porque eu era fria e racional. Sem a menor vocação para mãe. Será, então que eu estava no caminho certo? Eu deveria mesmo adotar? Será que essa coisa da maternidade não me pertence?
Depois de tudo que passei para ser aceita no cadastro nacional de adoção, uma verdadeira devassa na minha vida pessoal, após 587 formulários, certidões de sanidade física e mental, entrevistas com psicólogas e assistentes sociais, testes psicológicos (descobri, quase um ano depois, que o teste que aplicaram em mim, foi aplicado no Nardoni, a Jatobá não precisou… é mole? O fórum devia achar que eu era muito psicopata ao iniciar um processo de adoção de uma criança aos 50 anos. Só pode) e muito desgaste emocional, eu me vi nessa sinuca de bico. Lá estava a menina. Na minha frente. E meu coração batia mais forte sim, mas não era por “transbordar de amor materno, como num encontro de almas”, mas por um medo do caramba de não conseguir ser a mãe que aquela mocinha – ela já estava com 11 anos – precisava. Não fui invadida por um sentimento lindo e leve, mas por um tremendo cagaço que me fez foi suar frio.

Não fui invadida por um sentimento lindo e leve, mas por um tremendo cagaço que me fez foi suar frio. Foto: Reprodução
Será que isso vai dar certo? Será que eu vou dar conta dessa menina? Porque, claro, eu sabia que não seria fácil. Como adaptar duas histórias de vida tão diferentes? “Amor salva”, alguns me diziam. “Você é louca”, outros constatavam. Alguns, ainda mais pessimistas preconizavam: “essa menina não é coisa boa. Ela vai te matar!” Pois é. Até isso eu ouvi. Mas como eu gosto de um desafio e devolução nunca fez parte do meu vocabulário (e sim, pode ficar assustado. Tem muita gente que devolve criança. Além de cachorro, gato etc), lá fui eu em frente, com a cara e a coragem. Mais com a cara – e com as vísceras – do que com a coragem, mas tudo bem…
O processo de aproximação – é assim que é chamado – foi bastante revelador. E não, o que se revelou não foi o passado triste e violento daquela criança, mas o meu presente, vazio e desnutrido. Me descobri numa bolha sem fim. Presa e alienada num mundo de privilégios. Quem era eu como cidadã? O que fiz eu para essa sociedade? Quase nada. E aquela menina, magra e descabelada, com seu olhar faminto, me ensinou muita mais sobre o mundo e mim mesma, em poucas semanas, do que minhas centenas de livros e minhas décadas de estudo. Estava tudo ali, bem na minha cara. Não precisava ir à África, nem mesmo ao interior do Nordeste. Bastava atravessar a ponte. Olhar para o outro lado da rua. Abrir a janela da alma.

Eu certamente não nasci mãe. Nem ela, filha. A gente teve que aprender a construir essa relação mãe e filha. Foto: Reprodução.
Se eu comecei a amá-la? Muito. E além dela, eu comecei a amar a possibilidade do que eu mesma poderia ser. Do que nós duas, juntas, poderíamos ser. Eu não salvei ninguém, como alguns insistem em dizer. Na verdade, foi ela quem me salvou de mim mesma. Desse círculo vicioso e viciante onde eu vivia. Determinado por mim mesma. Por simplesmente cair no canto da sereia desse sistema perverso em que vivemos.
Esse amor não veio do além, trazido por anjos do Éden. Ele também não veio pronto, acabado, como “tinha que ser”. Ele foi acontecendo aos poucos. Como uma construção. Construção em que a cada dia, a cada momento, a gente coloca mais um tijolinho, mais um pouco de cimento, um pouco de água, para dar liga. Para montar a estrutura, o chão e subir as paredes com firmeza. Com segurança. E equilíbrio. Eu certamente não nasci mãe. Nem ela, filha. A gente teve que aprender a construir essa relação mãe e filha. Uma relação que não tem a genética por base, não começou logo cedo, tem muito histórico pesado para ser retrabalhado, ressignificado, mas que é a nossa relação.
Vai dar certo? Acho que já deu certo. E quer saber? Acho que aquela pessoa pessimista estava certa. Ela conseguiu me matar. Mas o que ela conseguiu construir e colocar no lugar foi um ser humano muito maior do que eu jamais imaginaria ser. Obrigada, minha filha, você é, de longe, a minha melhor arquiteta!

*Maria Paula é carioca, mãe e mestre em filosofia pela PUC-SP