[ensaio] A impossibilidade do esquecimento em ‘O passado’, de Alan Pauls

Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.

Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.

Pablo Neruda

Por Yuri Resende

A memória é uma das matérias-primas da História, mas esta jamais deve ser confundida com aquela. A memória é um fenômeno que não pode ser compreendido desvinculado do presente e da sua dimensão subjetiva, posto que está eivado de afetos, simbolismos, projeções, (preenchimento de) lacunas e detalhes que nos remetem ao sujeito que a produz. A História, por sua vez, como soberbamente definiu Pierre Nora, é uma “construção sempre problemática e incompleta do que não existe mais”. A tarefa do historiador é, portanto, promover uma “laicização” da memória, dotando o discurso produzido a partir de seu ofício de um caráter científico, posto que a historiografia é resultado de pesquisas que demandam metodologias específicas, revisão de bibliografia, análise crítica das fontes e considerável empenho intelectual do pesquisador. 

É razoável afirmarmos que a lembrança é somente um dos lados da moeda chamada memória, cuja outra face é o esquecimento. Valendo-me de Nabokov, se o esquecimento pode ser comparado a um espetáculo de uma noite só, a lembrança é uma exibição permanentemente em cartaz, repetida todos os dias para uma plateia idêntica e seleta. Comparar lembrança e esquecimento a um espetáculo, a uma espécie de encenação, não é fortuito; tal analogia aponta para a natureza representativa e artificial de ambos os fenômenos, isto é, para o modo como nos apropriamos deles e por eles somos apropriados no cotidiano.

Marcel Proust e Walter Benjamin já haviam notado isso, cada um a seu modo, ao assinalarem que não somos nós que possuímos a memória, mas é ela quem nos assalta, trazendo à tona, de supetão, uma lembrança que há poucos segundos parecia perdida em meio a um gigantesco e desorganizado acervo. Em contrapartida, todos os dias nos esquecemos de algo sem nos darmos conta, inconscientemente empurrando para debaixo dos móveis documentos importantes cuja existência será apagada da face da terra até o dia que, quem sabe, uma rearrumação for imperiosa e arrastarmos uma pesada mesa daqui e uma estante dali, e nos depararmos com eles. É essa rearrumação que gera uma reminiscência, eternizada na literatura por Marcel Proust e suas famosas madeleines. 

A literatura de Alan Pauls, romancista argentino que também é roteirista e crítico literário, guarda muitas semelhanças com a do dândi francês. Seu livro vencedor do Herralde, O Passado (2003), que ganhou recentemente nova edição no Brasil pela Companhia das Letras, ostenta o mesmo fascínio aventureiro pelo mar da memória que À la recherche du temps perdu, embora aquele opte por enfrentar os desafiadores vagalhões a seu modo. A semelhança mais evidente entre Proust e Pauls está, com efeito, no estilo de escrita: o argentino também é adepto dos parágrafos interminavelmente caudalosos, os quais parecem emular um oceano literário arisco que desafia até os mais experientes marinheiros.

O Passado narra a história de Rímini e Sofía, um casal que se conheceu na adolescência e passou doze anos juntos. Tendo experienciado tudo o que a vida poderia lhes oferecer numa vida a dois, faltava-lhes uma experiência fundamental: a separação. Após esse ponto de inflexão, as personagens intentam seguir seus respectivos caminhos, mas esbarram nas provocações da memória: vêem-se às voltas com os nós entre suas vidas impossíveis de serem desatados, os quais tornam suas existências avulsas esvaziadas de sentido. Isso acontece porque o passado na narrativa paulsiana se confunde a todo instante com a memória. Ou seja, não há, nas vidas dos protagonistas, aquela operação intelectual e laicizante da História sobre a qual falávamos anteriormente, capaz de distinguir o relativo do absoluto, o divino do secular, a representação do acontecimento.

Tudo é memória para as personagens e a existência presente está a ela subordinada. Dessa forma, a contínua representificação do passado se torna um elemento em comum entre os protagonistas. Para Rímini, “o passado era esse mar polido, regular, sem limites visíveis e Sofía o seu único rosto”. Sofía, por sua vez, é incapaz de abandonar a representificação e o horizonte de expectativas criado, fruto de sua projeção do futuro. Ambas as personagens, ao fim e ao cabo, desconhecem qualquer perspectiva que não seja aquela atravessada pela memória. Trocando em miúdos, o relacionamento abortado sempre retorna ao presente, acompanhado de todas as experiências vividas que ele integra e por ele são integradas, dotando a lembrança e o esquecimento de uma força motriz que ora motiva, ora paralisa. Trata-se de um passado que guarda algo de traumático quando encarado retrospectivamente e que, por isso, insiste em não passar, sendo ciclicamente ressuscitado, uma vez que se confunde com a formação identitária dos protagonistas.

Nesse sentido, há, inclusive, uma passagem bastante ilustrativa no romance de Pauls: Sofía se esquece do número do seu DNI (documento argentino equivalente ao nosso RG) ao preencher uma ficha médica e Rímini, prontamente, dita-o em voz alta, como se reafirmasse inconscientemente a unidade criada entre eles ao longo dos doze anos. Esse amor que torna dois em um é resultado dos sortilégios compartilhados, dos acasos repetidamente lembrados por Milan Kundera em A insustentável leveza do ser, os quais formam aquilo que o autor tcheco chama de “partituras da vida”. Quando duas pessoas mais velhas se encontram, escreve Kundera, “suas partituras estão mais ou menos terminadas, e cada palavra, cada objeto, significa algo diferente na partitura de cada um”. 

As reminiscências, todavia, nem sempre são desenterradas organicamente, vindo à tona por razões despretensiosas, como as célebres madeleines proustianas. Há, com efeito, uma insistência de Sofía em trazer as lembranças à tona, método por ela empregado para combater o esquecimento que tanto lhe angustia – o que pode ser verificado, por exemplo, nas fotos tiradas com Rímini no decorrer dos anos, cuja necessidade de organização e identificação seguem reiteradamente ressaltadas pela personagem e usadas como subterfúgio para suas aparições. Se “todos os dias há algo de que se despedir para sempre” é porque o esquecimento, a exemplo das reminiscências, é fugaz: o desvanecimento do fato na memória implica na sua inexistência, sua desconexão completa com o que o sujeito é no presente.

“Não há imunidade contra o esquecimento”, alerta o pai de Sofía em uma das passagens mais marcantes do romance, um aforismo que vai ao encontro das investidas levadas a cabo por Sofía contra as tentativas frustradas de Rímini de apagá-la deliberadamente. Ele se vê as voltas, assim, tanto com as reminiscências que não dão trégua quanto com aquelas oriundas da intervenção direta da ex, cuja presença já é o suficiente para atiçar uma memória que possui Rímini. Não é fortuito que esta personagem, para além de se relacionar com uma mulher afetada e ciumenta após a separação com Sofía, torne-se obcecado pelo trabalho, robustecido por seguidas carreiras de cocaína – as quais são organizadas e consumidas justamente sobre um retrato antigo da ex. Doravante, seguirá num caminho de gradativa decadência, incluindo uma doença de memória que o faz perder o domínio das línguas estrangeiras (o esquecimento, sempre ele!), impossibilitando seu trabalho. O fim do romance, o qual não comentaremos a fim de não comprometer a experiência do leitor em potencial, reforça o caráter dominador que o passado exerce sobre a personagem principal.

Também é oportuno assinalarmos que, paralelamente à história de Rímini e Sofía, Alan Pauls também navega pela biografia de um pintor chamado Jeremy Riltse, por quem os protagonistas nutrem admiração. Trata-se, com efeito, de uma figura-símbolo que atravessa o passado das personagens centrais – o que é reproduzido por Pauls na narrativa do livro que, de quando em quando, é suspensa em prol de parágrafos e mais parágrafos relatando o conturbado relacionamento de Riltse com o amante, Pierre-Gilles, e os frutos artísticos de seus desalinhos. 

Ambicionar uma libertação do passado compartilhado com Sofía, mas esbarrar na sua representificação é a sina de Rímini no curso das mais de 600 páginas do romance paulsiano. Ela, por sua vez, é acometida por um amor em excesso, característica compartilhada com uma dezena de outras mulheres que compõem o séquito de uma excêntrica terapeuta corporal, Frida Breitenbach, tida por elas como uma divindade humana, a máxima autoridade em relacionamentos. 

Em função desse amor que também se recusa a aconchegar-se no seu devido lugar no passado, logo na primeira parte do romance, Sofía escreve a Rímini implorando-o que, a despeito das atitudes que ele queira tomar em função da separação, incluindo relacionar-se com outras mulheres, jamais a esqueça. Que ele a puna como quiser, portanto, menos com a tentativa de esquecê-la.  Tal apelo é uma consequência do óbice que perturba Sofía e com o qual Rímini também se defronta continuamente: aquilo que reivindicamos como um evento inesquecível – neste caso, a relação de doze anos dos protagonistas – é transformado, já no próprio ato da experimentação presente do evento, parte integrante de uma memória e, portanto, passível de ser acometido pelo desvanecimento. 

Pablo Neruda escreveu que o amor é curto e o esquecimento é longo. Alan Pauls, talvez, assinaria embaixo e acrescentaria: esse esquecimento deliberado, do qual todos os casais que tiveram seus amores abortados querem se valer, inexiste. O esquecimento, nesses termos, é inalcançável, e, portanto, o esforço em conquistá-lo é longo porque fadado ao fracasso, um exercício de Sísifo. Não há perdão para aqueles que desejam impor o esquecimento à memória por processos artificiais, estranhos a ela – e não poderíamos concluir essa observação sem mencionar o excelente longa-metragem Brilho eterno de uma mente sem lembranças (2004) que caminha na mesma direção, comprovando, no desenlace do enredo, a impossibilidade do esquecimento.

Milan Kundera, certa vez, em uma entrevista, afirmou que o romance está dotado de uma espécie de missão, a qual o diferencia de outras formas literárias: ele transmite uma ideia, um conceito que somente pode ser apreendido pelo leitor nos termos propostos pelo autor. Os desafios ao se lidar com o passado por intermédio da memória estariam, portanto, no cerne do romance de Pauls. Poderíamos, com efeito, ir um pouco além: ao narrar duas vidas que compartilham o mesmo passado, cujas identidades com ele se confundem, o autor argentino também desvela a dor de uma separação, dando um close com sua câmera literária na navalha que corta a carne e separa siameses. Esse conceito, essa essência de O Passado, pode ser sintetizado na seguinte citação, que aparece lá pela metade do livro: “O amor pode até ser recíproco, mas o fim do amor, não, nunca”.

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