Filomena

Mas nós temos várias armas contra a frágil barata, como inseticidas, umas armadilhas pretas que afirmam matar não somente a própria barata como seus ovos e descendentes (praticamente um “genocídio baratal”)

Maria Paula Curto *

Nunca entendi direito porque tanta gente tem medo, ou melhor, verdadeiro pavor de barata. Eu sei que o ser é meio estranho, feinho e um pouco sujinho, mas por que tanto medo, tanta fobia? Afinal, barata não mata ninguém. Medo de cobra, jacaré, escorpião, aranha, tudo bem, dá para entender. Esses bichos matam. Até rato mata. Eu mesma tive um tio que morreu por conta da leptospirose, mas barata? Nunca vi nenhuma manchete no jornal dizendo: “Um homem morre atingido por uma barata voadora assassina” ou “Briga entre jovens e uma gangue de baratas de dimensões assustadoras deixa dois mortos e três feridos na grande São Paulo”. Esse medo tem de ter outra explicação…

Eu nunca tive esse medo. Afinal, basta um simples pisão e lá vai a pobre coitada para o além. Pode ser nojento, sim, com aquela gosma meio branca, meio off-white (acho esse termo tão chique para falar de um branco meio creme, meio sujo, que estava louca para usar) saindo de dentro dela, mas apavorante, não, né? Compare as dimensões: 1,50 m  de um humano (às vezes bem mais do que isso) versus o que? Uns 4 cm de bicho no máximo? Por favor, que luta mais injusta… Ok, ela pode voar e tornar a coisa mais complexa. Mas nós temos várias armas contra a frágil barata, como inseticidas, umas armadilhas pretas que afirmam matar não somente a própria barata como seus ovos e descendentes (praticamente um “genocídio baratal”), raquetes elétricas (esse negócio é muito sádico. Vocês já ouviram o barulho que faz quando atinge o alvo? Credo!) e por aí vai. E ela, o que ela tem? Apenas sua mísera e frágil presença. Nada mais do que isso. É suficiente? Parece que para uma grande maioria sim.

Quando eu era pequena, ou melhor, quando eu era criança (pequena mesmo eu acho que nunca fui), com uns 6 ou 7 anos mais ou menos, eu morava no Rio de Janeiro (sim, sou carioca, mas já estou em Sampa faz tanto tempo que já posso ser considerada paulioca ou caristana, sei lá) com minha mãe e meu pai, e nós fazíamos as nossas refeições no que seria, na planta original do apartamento, o quarto de empregada. A família era pequena, só nós três, e minha mãe, uma mulher prática e que nunca teve empregada, decidiu que usar aquele quartinho para as refeições seria muito melhor e mais fácil de limpar. Sábia Dona Lucinda. Nesse quartinho também ficava uma minidespensa com produtos de limpeza e latas e potes de mantimentos. Um belo dia, estávamos os três jantando quando a gente vê, no cantinho do quarto, atrás do armário, duas anteninhas marrons. Sim, era uma barata. E não, ninguém berrou. Meu pai levantou, tirou o chinelo e foi atrás dela. A barata sumiu. Achamos que ela tinha ido embora. Passou pela fresta embaixo da porta. Fim.

Só que não. No dia seguinte, mais uma vez durante o jantar – era sempre no jantar – lá estava ela novamente. E lá foi meu pai para a perseguição. E…Nada.

Apesar do aumento na munição, a batalha continuava perdida“. Imagem: Reprodução.

No terceiro dia, ou na terceira noite, meu pai já estava mais preparado: com o chinelo na mão direita e um Baygon horroroso na esquerda, para pulverizar e eliminar a coitada com um simples jato. Você pode estar se perguntando por que não colocávamos inseticida no quarto e no armário. Bem, na época, os inseticidas eram tão fortes, mas tão fortes, que além da barata e de qualquer outro animal presente na casa, eles seriam capazes de exterminar também os moradores, principalmente os alérgicos como a besta que vos escreve… Apesar do aumento na munição, a batalha continuava perdida. Barata 3 X 0 meu pai.

Confesso que no quarto dia, ou até antes, eu já esperava pela barata como se espera por uma visita. Ela começou a fazer parte da família. Tanto é que minha mãe e eu resolvemos nomeá-la: Filomena. E, claro que a nossa torcida, mesmo que velada, não era mais pela vitória do meu pai ou do Baygon, mas da Filomena. Continuar as garfadas sem ver aquelas anteninhas não teria mais a menor graça. O nosso mundinho dentro daquele quartinho ganhou outro sentido por conta de Filomena. Depois de um tempo, até meu pai se acostumou. “Deixa essa barata comigo. Um dia, eu pego”. E a Filomena continuou fazendo suas aparições por mais algumas noites. Mostrava as anteninhas quase que agradecida por compartilhar conosco esse momento familiar íntimo e desaparecia, sem deixar rastros.

Um dia, meu pai se irritou e conseguiu. Esmigalhou a Filomena com seu chinelo tamanho 42. Foi horrível. Meus olhos se encheram de lágrimas. De verdade. Eu pensava na Filomena, na família dela. O que seria dos seus pais ou dos seus filhos sem ela. Porque certamente ela tinha família. Ah, se tinha. Pois ela sabia reconhecer uma.

Até hoje eu lembro da Filomena. Com uma ponta de tristeza e uma dose de nostalgia por aqueles momentos em família naquele quartinho improvisado. Os risos pela derrota. A espera pela presença incomum. A intimidade compartilhada. O afeto pelo que nos é diferente. Associar uma barata a uma memória afetiva pode soar estranho. Tudo bem, eu assumo essa estranheza. No entanto, ter um ser humano ocupando aquele quartinho minúsculo não deveria soar muito mais estranho e perverso? Pois é. Estranhas somos eu e minha mãe que choramos pela morte da Filomena, certo?

Barata é bicho nojento? Talvez. Mas sempre lembro que ela, a barata, tem que se virar no esgoto, se alimentar de restos de lixo e toda sorte de coisas sujas, podres e fedorentas. Esse é o alimento dela, o habitat dela, e sua forma de sobrevivência. Que, aliás, vem dando certo por milhares de anos. E eu? Quantas vezes não vivi no esgoto cercada de sujeira por todos os lados por covardia ou acomodação? Com quantos restos eu já me contentei? Quanta merda já tive que engolir para não abrir mão de privilégios? Quantas vezes fui esmagada em praça pública sem dó nem piedade? Quiçá seja eu ainda mais nojenta do que as Filomenas do mundo…

Medo ou nojo de barata? Não. Jamais. Por elas, eu tenho respeito e até uma certa admiração…

*Maria Paula é carioca, mãe e mestre em filosofia pela PUC-SP

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