(Imagem: Letícia Godoy)
Em Epidemia Prata, espetáculo da Companhia Mungunzá, os intérpretes todos têm seu corpo pintado com uma tinta metálica. Em alguns casos, como no monólogo inicial da peça, os atores já se apresentam com o corpo pintado, enquanto em outros momentos os integrantes da companhia coreografam uma ocupação gradual do corpo pela tinha como forma de espelhar a epidemia apresentada no título.
Trata-se de uma escolha inspirada por uma ação real (os “meninos prateados”, que pintam o corpo com uma tinta semelhante para se apresentar e pedir dinheiro, com a justificativa que “prata chama prata”) que, com outras referências propostas pela companhia, forma um novo arcabouço de imagens: a cor prateada evoca um cachimbo de crack, droga utilizada por grande parte dos personagens cujas histórias serão representadas, e também um estado de paralisia, de petrificação- o mito da Medusa, e da transformação em pedra de quem a encara, é elaborado dentro da peça em um trocadilho, sendo equiparado ao vício em pedras de crack.
O jogo de palavras é extremamente sério, e nessa decisão a Companhia coloca algo que aparecerá novamente em outras passagens do espetáculo: a manipulação da linguagem como uma das poucas formas de afirmação, e de elaboração positiva, criadora, dentro de uma representação da violência que é muito bruta, e que rejeita formas usuais de colocar essa elaboração artística. Em mais de uma passagem, os atores, se direcionando ao público, afirmam: “não há poesia aqui”. As aberturas, que em alguns momentos permitem que a afirmação se transforme em pergunta- “Mas onde ela está? Será que ela é impossível de alcançar?”- são raras. Trabalhar com as histórias narradas é entender que são poucos, e que passam longe dos discursos mais comuns, esperados, os respiros que permitem à luz entrar.
Fronteira Aberta
Epidemia Prata é um espetáculo que se inicia com a impossibilidade de representar. A atriz em monólogo, descrevendo um acontecimento ocorrido em um debate na sede do grupo, o Teatro de Contêiner, assume os gestos físicos de uma personagem, moradora de rua, que invade uma discussão acadêmica. Em um momento dessa construção, a intérprete explicita que é impossível repetir os movimentos feitos com a boca pela mulher, resultantes do uso contínuo do crack, provocando uma quebra na representação.
Na cena, entretanto, a própria impossibilidade de representar está figurada em uma ação concreta: uma repetição do discurso, e também uma coreografia, repetitiva e bastante marcada, de movimentos com o braço, tomam o lugar do gesto impossível.
Essas escolhas cênicas- tanto de ações individuais dos intérpretes quanto de composição de elementos sonoros e visuais- que são colocadas nesses momentos de entrave, que sugerem um limite da representação frente à realidade das histórias contadas, são de especial importância em Epidemia Prata. Há, em diferentes situações, a procura por um gesto que, se não dá conta da violência daquilo que é contado, permita ao menos se aproximar dela, representá-la na forma de diferentes perturbações.
Em passagens da primeira parte da peça, a figuração proposta da violência é, sobretudo, sonora. Ruídos metálicos estalam no ar em passagens, em passagens acompanhadas de uma coreografia cheia de gestos bruscos e intensos. Nesse momento, o intuito é apresentar um conjunto de sons que não pode ser elaborado harmonicamente, colocar a plateia frente a uma dissonância.
Isso contrasta com um momento posterior do espetáculo, em que um MC convidado, presente na plateia, é chamado ao palco. O cantor elabora uma apresentação que ecoa elementos dessas cenas dissonantes- barulhos estridentes de instrumentos de metal, estalos que remetem a tiros disparados pela polícia- e que complementa, dramaturgicamente, uma cena apresentada anteriormente, em que um dos integrantes da companhia relata a violência, imposta pela mãe, a um menino que rouba rolos de papel higiênico do teatro.
Essa intervenção traz um momento, talvez, em que respostas se apresentam, em que algo parece se fixar, ao contrário da questão permanente se a elaboração artística é, de fato, possível. É uma passagem na qual não são os artistas da companhia em destaque, porém em que um dos integrantes, que participa da música, apresenta, em monólogo, uma fala representativa do processo de criação das imagens de Epidemia Prata: apresenta as formas como o corpo se altera a partir da violência policial, as mudanças trazidas na fala e na postura pela necessidade de se esconder e se preservar.
Essa imagem se torna especialmente interessante pois explicita um dos pontos possíveis de encontro entre a violência irrepresentável, como o espetáculo muitas vezes a coloca, e as possibilidades existentes para transforma-la em linguagem artística- aquilo que está colocado numa composição visual, de construção de um espaço e de personagens, antes de chegar a uma dramaturgia que questiona a respeito de suas possibilidades.
Há um outro momento em que uma possibilidade artística parece se afirmar: dentro de um monólogo que repete a afirmação que “o que acontece no palco não é poesia”, há uma passagem em que a intérprete, citando personagens que foram apresentados na peça, coloca o seguinte direcionamento ao público: “como é possível compreender que um homem que invade a privacidade de alguém para pedir dinheiro, ou uma mulher que abaixa as calças e defeca na rua, está dizendo algo a respeito de si?”. Dizer de outra forma algo a respeito de si- está aí uma das muitas definições possíveis para a poesia.

(imagem: Letícia Godoy)
Deslocamento
A apresentação de Epidemia Prata no teatro do Sesc Bom Retiro gera deslocamentos físicos óbvios, em relação à concepção inicial da peça. A presença da ação dentro de um palco italiano semicircular pede uma nova composição das cenas, em relação ao espaço do Teatro de Contêiner. A mudança de lugar também traz a perda da relação com o espaço presente na proposta original, que pressupõe
É interessante, nessa situação, retornar ao debate que está na origem da primeira cena da peça, do qual um trecho é reproduzido antes do início do espetáculo, num momento que os atores, à vista do público, preparam o palco para a apresentação. O espetáculo está transposto em um espaço que, de alguma forma, se inclui num problema discutido pela urbanista Raquel Rolnik no trecho citado: a mudança de dispositivos culturais para a região do centro de São Paulo, pensada pelo governo como uma forma de valorizar novamente a região para potenciais moradores da classe média.
Que essa reocupação seja a prioridade pensada, em lugar do atendimento a uma população que já vivia em uma condição empobrecida antes de seu deslocamento para uma região central, coloca em vista o elitismo e a exclusão que estão na raiz das políticas públicas executadas para toda a região do centro- e a manutenção da violência, do esvaziamento de espaços públicos na região, e da repressão policial, faz desses pólos culturais espaços isolados de seu entorno. As questões colocadas por Epidemia Prata em sua dramaturgia, constantemente procurando o limite do que seus encenadores, em sua maioria de classe média e próximos a esse circuito cultural, podem figurar, refletem um conflito geográfico e urbanístico que está muito próximo da ação da companhia.
Há também um deslocamento temporal que, embora não citado no texto da peça, mantido em relação às apresentações originais do espetáculo em 2018, altera o sentido daquilo que é apresentado. O termo “epidemia” presente no título passa a ter um novo sentido após a disseminação do COVID-19, e, tendo em conta os efeitos da pandemia dentro dos espaços dos quais trata o espetáculo, e a atuação, é possível pensar a epidemia do COVID também como uma disseminação ainda mais descontrolada desse empedramento das individualidades.
A gestão da pandemia marca, dentro da violência contínua das histórias citadas, e da ação do Estado em relação à população de rua, um momento em que a violência patrocinada pelo governo se coloca através da invisibilização social. A ausência sempre foi a ação do governo em relação à população moradora da Cracolândia- na falta de abrigos adequados, de dispositivos básicos, da elaboração de políticas que considerassem a segurança da população de rua. De forma muito clara, entretanto, durante a pandemia a ausência se torna a arma que executa a brutalidade, mais que cassetetes ou fuzis.
Os poucos canais disponíveis de acolhimento são paralisados, os itens básicos necessários para conter a transmissão do vírus não são entregues. Para além de todas as faltas, está também a ausência da história, e da memória: a falta de ação do Estado em sequer quantificar os mortos em decorrência do COVID, de honrar aqueles que morreram da doença, de apresentar alguma forma de memória, através da valorização das histórias e das individualidades atravessadas pela doença.
A prata do espelho
É interessante, então, repensar as imagens trazidas na dramaturgia do espetáculo. Em especial, a alusão ao mito da Medusa ganha novos significados a partir dessas novas marcas temporais. Alguém que não tem direito à alimentação,ou aos cuidados médicos básicos, ou que não tem direito à elaboração de sua história, é alguém petrificado.
A Medusa, no mito, só pode ser derrotada com a ajuda de um espelho- é o que ensina a ação de Perseu, que utiliza dessa forma seu escudo para não encarar diretamente à Górgona. Só a memória pode trazer a reflexão, e a consciência da individualidade, que estão tão imediatamente colocadas na imagem refletida no espelho. Só com esse espelho em mãos, olhando para si, alguém poderá olhar para a linguagem, manipulá-la, inventá-la, e dizer afinal se a poesia é ou não possibilidade de falar sobre si.
Ao final do espetáculo, falo com um amigo: impressionado, sinto as pernas trêmulas, um frio que sobe o estômago, por um instante tenho a sensação que não conseguirei levantar do assento. Se ainda sinto, ele responde, se ainda tenho as tensões, os movimentos internos do corpo, é porque não me tornei pedra. O corpo fala, chama, e é preciso caminhar com ele. Esse chamado é aquilo que mais fortemente se opõe, resiste, e não aceita de forma alguma a petrificação imposta. Num caminho que remete à individualidade, ao próprio corpo e ao espaço que ele ocupa no mundo. Num caminho em que a prata pode ser a imagem de um espelho.
(Epidemia Prata, espetáculo da Cia. Mungunzá de Teatro, foi apresentado no Sesc Bom Retiro entre os dias 12 e 15 de janeiro de 2023.)