Clarice, sem aspas

imagem Doodle – reprodução

Clarice Lispector. A sua escrita nunca se esgota, a verdade também nunca se esgota nela. Cada fragmento de mentira é um espelho a quem deseja se enxergar, e a escrita de Clarice é tão grande que nela cabem os reflexos de todas as aflições.

Bruno Pernambuco

Clarice é uma escritora onipresente, e, mais que isso, de uma ubiquidade curiosa. Seu nome é como um selo de aprovação, um sinal que permite a qualquer coisa a possibilidade de ser dita, uma autorização de existência, garantindo o seu valor. Qualquer frase ganha sua existência através de uma escrita mística, penumbrosa e ao mesmo com a luz de uma absoluta simplicidade. Porque a sua escrita nunca se esgota, a verdade também nunca se esgota nela. Cada fragmento de mentira é um espelho a quem deseja se enxergar, e a escrita de Clarice é tão grande que nela cabem os reflexos de todas as aflições.

A falsidade, se bem que esse termo mal cabe – não se mostra apenas naqueles casos mais assombrosos – “um dia sem rir é um dia desperdiçado”, disse ela, junto com mais uma infinitude de autores que, de Chaplin a Bob Marley, figuram nesse panteão dos grandes frasistas – mas naquelas frases belas, criadas, que deixam em quem não se recorde de coração sua obra completa uma dúvida autêntica com respeito à autoria.

Um pôr do sol aparece laranja, com um rastro de mar ao fundo, e em letras brancas se anuncia uma frase que tateia a linha entre a autoajuda e a alta literatura. Um olhar sério e penetrante da autora anuncia de maneira pesarosa a mais tonta das citações inventadas. Qualquer coisa que mereça aplauso – mesmo que um tímido, retido, envergonhado – por qualquer motivo, é digno de ser frase de Clarice Lispector. Clarice tornou-se um cobertor para tudo que luta contra a chatice da vida, contra a pilhéria, a humilhação, a tortura.

A onipresença faz com que uma única Clarice se desdobre em muitas. Isso pode ser boa uma notícia, tendo em vista o perigo de escassez que uma literatura única pode causar. Qualquer boa escrita, que valha ser lida, é uma escrita que é para todos, mas no caso de Clarice, não é uma única, ela copia-se em milhares de pessoas, ela tem milhares de faces, ela se contradiz mais do que o faz qualquer autor, ela tem mais nuances, mais sutilezas, que aparecem em pílulas descartáveis, completamente esquecíveis.

Clarice nunca deixou de escrever, mesmo que hoje ela o faça por mãos de outros. Sua obra ainda é tecida. Um fio d’água escorre desde Água Viva até o presente, marcando uma obra que ainda é escrita. Novos fragmentos de G.H. e de Macabéa constantemente se descobrem, e, afinal, nenhuma delas ainda disse tudo o que tinha para dizer. A escrita de Clarice é estritamente clássica, à sua revelia, inevitavelmente ela tomou essa dualidade para si. Essas frases de mil Clarices me têm um endereço muito certo.

Me fazem lembrar de uma época em que eu, novinho e tonto, ia com outros redatores desta Fina – tão jovens quanto, mas menos tontos que este que vos escreve – entre as mágoas de juventude discutir Clarice. Me lembro de uma anotação em que eu jurava, do alto da minha tonteza, que para a autora tinha calhado o pior destino possível. Que a pior coisa que podia acontecer a um escritor era deixar o leitor encafifado, querendo entender seu mecanismo.

O mais grave erro possível seria que o escritor deixasse o texto como um segredo a ser desvendado, em vez de envolver inteiramente a quem o lê, de fazer com que a história fosse uma parte a mais do eu – ou algo que o fizesse crescer para poder incorporar. Hoje entendo que Clarice é, mais que admirada, amada, intensamente.

Suas tantas faces e tantas frases, as que realmente são suas, e as que podem ser de qualquer pessoa, não são suas, são de cada um que as lê – a invenção contida nessas pílulas deixa cada um mais junto da autora, para, aos poucos tecer sua própria felicidade clandestina. A internet por vezes deixa as intimidades um pouco públicas demais. Mas talvez seja a única forma que temos de alcançar os mortos.

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