Adorável imperfeição

E não, não pensem que minha autoestima é baixa. Não mesmo. Eu me gosto assim mesmo: imperfeita, incompleta, humana. Aprendi muito cedo que amar não é porquê, mas apesar. Isso facilitou muito a minha vida. Nunca precisei buscar razões para o meu gostar (alguém consegue?)

Maria Paula Curto *

Gostaria de começar o primeiro texto de 2022, agradecendo aqueles que se preocuparam com a minha fala de que estou mais velha, mais flácida e mais esquecida. Obrigada, de verdade, mas queria deixar claro que não se trata de autopiedade, longe disso, trata-se de uma simples constatação. Como vocês já sabem, sou muito ligada a números e queria aqui expor alguns argumentos físico-matemáticos sobre essa realidade. Sim, realidade. Dura (ou mole, dependendo do ponto de vista), um pouco sofrida, mas verdadeira.  Vamos ao primeiro argumento, que eu chamaria de argumento físico: quer eu (ou você) queira ou não, há uma força de 9,81 m/s2, vulgarmente conhecida como gravidade, nos puxando pra baixo 24 horas por dia, 7 dias na semana. Inexoravelmente. Não tem jeito! Pense então comigo: se ela entorta até osso (a gente diminui de tamanho quando envelhece, sabiam?) imaginem alguns meros músculos ociosos…

Vocês podem então argumentar que há formas de lutar contra esse “amolecimento corporal” (por favor, não pensem em outras coisas que se tornam moles e para baixo ao longo do processo de envelhecimento, pois essas já foram devidamente combatidas e resolvidas pela famosa pílula azul, caso você não seja cardíaco, claro. Senão, talvez catuaba e reza forte resolvam…) e contra também a famosa falta de energia (para encarar uma noitada na balada e ainda acordar cedo para a aula de Estatística 1, aos sábados de manhã, como eu fazia no auge dos meus 19 anos), mantendo uma alimentação saudável, fazendo meditação ou malhando feito loucos em academias lotadas. Não a academia platônica, que fique bem claro (e olha que Platão gostava de exercitar o corpo), mas aquele mundo à parte, feito de suor, lycra colorida e bumbuns e seios tão naturais quanto tintura de cabelo. Algo como louro intenso natural. Supernatural. Só que não. (Não consigo nem disfarçar o horror que eu tenho de malhação. Não tem jeito.) Porém, eu vou mostrar a vocês agora, com meus “argumentos matemáticos”, que academia e malhação têm pouca eficácia na luta contra a flacidez. Você duvida? Eu posso provar. Vem comigo.

“Quando alguém me sugerir uma malhação diária, responderei com base na fórmula científica-calculista-numérica da preguiçosa de plantão: desnecessário.” Reprodução: Correio do Povo.

Aprendi, ainda no Ensino Médio – que na minha época se chamava Científico, nome bem mais charmoso, vamos combinar –, que qualquer coisa 10 vezes menor que outra pode ser desprezada nos cálculos para resolução de um problema. Ora, vamos então montar nossa equação (não se assuste, a matemática pode ser muito bela): imaginem que eu malhe 2 horas todos os dias, incluindo sábados e domingos (o que já é por si só um sacrilégio). Como a bendita da gravidade atua 24 horas por dia, todos, eu disse todos, os dias da semana, meu enorme esforço diário para endurecer ou subir alguma coisa aqui nessa corpitcho será 12 vezes menor do que a tal da força gravitacional. 12 vezes!!!! Ou seja, totalmente desprezível!! Em resumo, acabo de demonstrar matematicamente que eu poderia ter usado todo esse tempo, dinheiro e energia, fazendo algo muito mais relevante (e que não entra em qualquer disputa com a gravidade), como ler um livro (vocês já pensaram quantas pessoas poderiam ler Em busca do tempo perdido, se elas soubessem que seu tempo na academia era inútil???) ou  ver o último filme do Woody Allen (aliás, me recomendaram muito) ou maratonar aquela série que eu tanto queria? Com direito à pipoca ou até uma cervejinha gelada? (Afinal, como diria o provérbio popular, já que estamos no inferno, melhor abraçar o capeta…). Por tudo isso que acabo de demonstrar, física e matematicamente, quando alguém me sugerir uma malhação diária, responderei com base na fórmula científica-calculista-numérica da preguiçosa de plantão: desnecessário. E me manterei sedentária e feliz. 

Mas não é somente o corpo que vai amolecendo e cansando.  O cérebro também. Infelizmente. Antes, eu tinha uma memória de elefante, me lembrava de frases inteiras de livros que havia lido uns cinco anos antes e poderia fazer resenhas e críticas de filmes de décadas passadas. Agora, esqueço o nome do protagonista do livro que li mês passado. E levo uns 15 minutos pelo menos até perceber que já vi o filme que baixei na Netflix. Difícil, né? Porém, verdadeiro. E não precisam ter pena. Vai acontecer em algum momento. Comigo e com você. Desculpe se eu sou a mensageira do apocalipse, mas é a vida. O envelhecimento faz parte. 

“Como a bendita da gravidade atua 24 horas por dia, todos, eu disse todos, os dias da semana, meu enorme esforço diário para endurecer ou subir alguma coisa aqui nessa corpitcho será 12 vezes menor do que a tal da força gravitacional. 12 vezes!” Reprodução: Mark Anderson

E também não adianta reclamar, pois a alternativa ao tal envelhecimento não me parece ser interessante. Pelo menos, não agora. Por enquanto, apesar da flacidez, da memória fraca e de um certo cansaço que já não me permite mais aguentar o tranco de uma noite em claro sem olheiras e uma ressaca das bravas, ainda prefiro viver. Talvez, quando o esquecimento tiver me tomado por inteiro ou o cansaço não me deixe sair da cama, eu prefira a “outra opção”. Não, não precisa se preocupar, pois não se trata de uma tendência ao suicídio. Nem sinais de depressão. Absolutamente. É apenas outra constatação. Como diria o protagonista de Mar Adentro (aquele super gato do Javier Bardem), a vida tem que ser uma escolha, ela não pode ser uma obrigação…

Não somos perfeitos. As falhas fazem parte da natureza. Da nossa natureza. E se vocês algum dia esqueceram, lamento informar, mas nós também fazemos parte dela. Somos animais, sim. Que se acham muita coisa, mas na essência, somos carne, osso, arrogância e alguma ousadia. Ousadia por continuar em movimento, mesmo sabendo que o fim é certo. 

E não, não pensem que minha autoestima é baixa. Não mesmo. Eu me gosto assim mesmo: imperfeita, incompleta, humana. Aprendi muito cedo que amar não é porquê, mas apesar. Isso facilitou muito a minha vida. Nunca precisei buscar razões para o meu gostar (alguém consegue?) E percebi que a diabetes e a incontinência urinária do meu poodle, a bagunça e a preguiça excessiva das minhas filhas ou o Alzheimer da minha mãe não diminuíram uma vírgula do amor que tenho por eles. Ao contrário. Se eu só puder amar a perfeição, acho que terei que me mudar para o Olimpo e comer ambrosia com eles, os deuses. Por aqui, tenho que lidar aberta e francamente com as falhas. E amar sem motivo ou razão. Basta apenas um pouco de água, uma pitada de sal para incrementar e uma enorme dose de loucura. 

*Maria Paula é carioca, mãe e mestre em filosofia pela PUC-SP.

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