E você me acuse de não ter te avisado. Eu venho tentando. Muito. Porém, sem sucesso.
Querida Maria Paula,
Resolvi escrever essas poucas linhas para ver se consigo chamar um pouco a sua atenção. Estou tentando alguma comunicação nos últimos dias, mas você não me dá a menor trela. Então, como você gosta de ler, achei que talvez dessa forma, por meio de uma breve carta, eu conseguiria dispor de alguns minutos na sua agenda pra lá de atribulada.
E não, não vou me queixar com você. Só um pouco. Vou relatar o que venho percebendo nos últimos tempos como um simples sinal de alerta. Antes que seja tarde demais. E você me acuse de não ter te avisado. Eu venho tentando. Muito. Porém, sem sucesso.
A sua desatenção comigo sempre existiu. Sempre. Você me acha um fardo. Estou seguro disso. Se pudesse, minha cara, você me deixava em casa, na cama ou no sofá da sala e saía por aí, lépida e faceira, sem a minha companhia. Estou mentindo? Claro que não, sei muito bem disso. Afinal, te acompanho há mais de 50 anos. Mas após essa maldita pandemia, sinto que a coisa piorou. O que era um certo desleixo, um quase charmoso descaso, virou um total desprezo pela minha pessoa. Você, sinceramente, passou dos limites.

E olha que eu não estou te pedindo flores, bombons ou presentes com laços de fita vermelho. Longe de mim esperar uma coisa dessas de você. Jamais faria isso. Nossa relação já estava bem clara desde o ponto de partida. Sei que você não é dessas. Não curte esses romantismos. Tampouco espero elogios à minha beleza. Conheço você o suficiente para entender que aspectos estéticos não fazem parte do seu rol de valores apreciados. Teu negócio é “essência” (sabe-se Deus lá o que seja isso) e pensamento. Razão e lógica, esses são valores que te movem. Racionalidade é seu sobrenome. E tudo bem. Eu estava ok com isso. Já tinha até me acostumado. Mas é que agora, talvez a partir desse tal de Coronavírus, a coisa piorou muito. E mesmo após três doses da vacina, liberação de máscara e um certo espírito de “volta à normalidade” que vem tomando conta do mundo (como foi bom ver o desfile das escolas de samba no Carnaval, não foi?), você continua me desprezando totalmente. Ou no popular: “cagando baldes” para mim. Assim, não dá. Não há condições de continuarmos com a nossa relação. E veja bem, se eu resolver sair dela, amorzinho da minha vida, você é quem vai perder mais. Aliás, sem querer parecer arrogante, vai perder tudo. Tudo mesmo. Não estou certo?
Pense bem no que você anda fazendo comigo. Não dá para dormir “a la Casas Bahia”, em 24 prestações de meia-hora, e acordar achando que está tudo bem. Não, queridinha, não está. Também não dá para iniciar reuniões às 9h (ainda bem que, pelo menos, você toma um bom café da manhã. Viva a Marinez e sua santa tapioca, salada de frutas, cuscuz!!) e emendar uma na outra como se não houvesse amanhã. Bem, no caso, continuando desse jeito, talvez não haja mesmo… Você precisa levantar dessa cadeira! E não é somente para sentar no trono – isso quando você não estica as reuniões até o instante em que, se você gargalhar, uma parte de mim vai explodir e a cadeira ficará molhada e não será de suor… – nem tampouco para sentar no sofá e continuar encarando telas, só que dessa vez, maiores, para ver o jornal ou alguma minissérie. Isso lá é vida?
Você precisa olhar mais para mim. E não para as telas. Me levar para dar uma volta. Pegar um arzinho fresco. Antes, pelo menos, você era obrigada a dar pequenas voltas no quarteirão para que a Hanninha fizesse as necessidades dela. Mas agora que ela se foi, e você ficou sem cachorro pela primeira vez em mais de 20 anos, nem esses pequenos instantes de movimento você se permite. Sedentarismo tem limite. Preguiça também. Isso já é imobilidade. Inércia. Nem vou pedir para você se exercitar comigo, fazendo ginástica ou Pilates ou ioga, porque você não vai fazer mesmo, mas ficar sentada ou deitada 24 horas por dia não está te fazendo nada bem amiga. Acorda. Enquanto é tempo.
Nem me venha com a ladainha do “tenho que me virar, pois os boletos não param”, que não cola mais. Se você não começar a me tratar melhor, queridíssima, fique tranquila, pois não haverá mais nenhum boleto a pagar. O último você terá liquidado ao me comprar um terninho de madeira ou um forninho especial. Sem crise, pois esses custos acho até que o dinheirinho guardado na poupança (ou aplicado em renda fixa) vai dar para cobrir. Sem estresse.
É isso que você quer? Acho que não, né? Até porque, coitada das meninas, mal foram adotadas e já perdem a mãe? Isso deve ser muito triste. Ok, agora eu apelei. Mas é que se eu não faço drama, você lembra de mim uns três dias mais ou menos, e volta à rotina cartesiana de sempre: me deixa largado em algum canto e sai por aí andando como se eu não existisse. Eu existo sim!!! E com o passar do tempo, costumo exigir mais atenção. Não menos. Igual carro. Não basta botar gasolina e trocar pneu. As revisões começam a ser mais frequentes, mais caras. Só que no meu caso, há um agravante: não dá para trocar por um mais novo. Modelo 2022. Infelizmente, essa troca não será possível, minha senhora. Você vai ter que aguentar o modelão 67 até o fim. Custe o que custar.
E para que não te custe demais, comece a olhar para mim agora. Invista em coisas simples para fazer comigo. Pequenas caminhadas, algumas pausas ao longo do dia, umas mexidas no pescoço (ele, então coitado, é das minhas partes que mais sofre com a sua falta de atenção), talvez um creme hidratante após o banho (adoro ficar cheiroso e sedoso), uma dancinha para me sacudir um pouco e uma boa desaceleração de ritmo. A vida é breve? Sim, mas nessa velocidade, você nem vai perceber o que ela tem para mostrar. Ou não vai conseguir. Porque eu já estarei tão cansado que vou acabar desistindo de você.
Sei que você é da turma do René: “Penso, logo existo”. Também adoro essa frase. Acho maravilhosa. Só que, sem euzinho aqui, amore mio, você não fala, não anda, não come, não pensa, logo, não existe.
Atenciosamente,
Seu esquecido e desprezado corpo

*Maria Paula é carioca, mãe e mestre em filosofia pela PUC-SP.